O capuchinho cinzento - Matilde Rosa Araújo

Edição de 2005
Ilustrada por André Letria
Editora Paulinas

Sinopse:
A menina Chapeuzinho Vermelho envelheceu. Agora ela é Chapeuzinho Cinzento: uma mulher prudente e mais confiante.
Um pouco cansada e com o corpo mais frágil por causa da idade, Chapeuzinho aprendeu a conviver pacificamente com o lobo. Uma relação tão pautada pela tranquilidade que o lobo até se encanta com a ternura do olhar - o mesmo da menina que levava guloseimas à vovó doente - e que agora o afaga como se fosse um cão.
Narrativa estilizada ou que se apropriou do conto Chapeuzinho Vermelho, Matilde Rosa Araújo, escritora portuguesa renomada, resgatou do acervo dos contos maravilhosos uma das personagens mais conhecidas e amadas pelas crianças. Antes vestida com capa vermelha para retratar a menina púbere, agora Matilde nos conta sobre a mulher vestida de cinza, alcançada pelos anos que se passaram; mais segura e tranquila, porém ainda dentro de uma história inacabada, que mesmo em harmonia com o lobo, ainda tem muito por contar.
André Letria imprimiu nas suas ilustrações índices simbólicos carregados de criatividade; são imagens que desafiam o leitor no jogo da interpretação em um cruzamento da versão clássica com a poética de Matilde Rosa Araújo.

Texto da obra:

O Capuchinho Cinzento

Matilde Rosa Araújo

O que posso eu contar?

Passaritos de cristal, por que andam em volta da minha cabeça a contar uma história que eu não entendo?

A Lua a rodar na noite e a minha cabeça entontecida a escutar, a escutar. A Lua tão redonda, grande, cheia de luz, vai descansar enquanto a noite for morrendo…

Passaritos de cristal, o que têm para me dizer?

E os passaritos de cristal, a voar, a cantar:

— É a história do Capuchinho Cinzento, que foi o capuchinho vermelho da menina que levava uma merendinha à avó e encontrou um lobo mau!

— Ó delicados cantores de cristal, digam-me, cantem-me, o que aconteceu ao Capuchinho Cinzento, agora, com tanta idade?

— Lembra-se do Capuchinho Vermelho a caminhar pelo bosque verde cheio de paz? Um bosque de folhas verdes molhadas de pérolas de orvalho? Um bosque perfumado com o aroma das folhas que dançavam com o vento? Que secavam com o lume de luz que tombava dos céus?

— Ó delicados cantores de cristal, ajudem-me, tragam-me à ideia um beijo de prata do frio das águas para eu desprender. Eu só vejo a Velha de Capuchinho Cinzento muito perto, muito perto de mim. E vejo um Lobo com botas de espinheiros a caminhar, a caminhar, a caminhar…

Ai, passaritos de cristal, para onde vai a Velha de Capuchinho Cinzento?

— Irá talvez à fonte ouvir o violino da água que corre, ou vai buscar uma cantarinha de água.

A água, quando fica presa dentro da cantarinha de barro, não pode cantar. Mas mata a sede!

— Passaritos de cristal, digam-me o que eu não sei contar. Cantem! Viram um dedal brilhante no dedo da Velha de Capuchinho Cinzento?

— Ela esqueceu-se de o tirar quando veio à fonte. Estava a coser nos calções e sainhas dos netos, aqueles buracos das roupas que só as crianças sabem fazer. Levantou-se num repente e começou a andar…

— Sabem, passaritos? Eu oiço a Velha de Capuchinho Cinzento cantar! Com uma voz trémula, já um poucochinho rouca, mas entoada e doce como quando tinha o capuchinho vermelho. E ia tão contente, pelo bosque, levar a merendinha à avó. Ah! Mas agora eu continuo a ver o Lobo a caminhar, a caminhar… em direcção à Velha de Capuchinho Cinzento.

— Ela nem dá por ele, assim a cantar e já um pouco surda. E o Lobo vem devagar, manso, muito manso, para não a assustar.

— Passaritos de cristal, ajudem-me agora! Estou aflita a contar esta história. História que se passou. De verdade. E parece que quer continuar… Ó delicados passaritos de cristal, então por que é que a Velha de Capuchinho Cinzento vai à fonte? É noite ainda, e ela canta, canta e a Lua redonda dança no céu!

O Lobo avança em sua direcção. E a Velha não escuta os seus passos… Parece que o seu escutar só entende o violino da água da fonte que vai prender na cantarinha de barro. A Velha já vai ficando cansada, as pernas estão fracas, doridas de tanta idade. Então, vê uma pedra do bosque, quase escondida debaixo dos musgos que a cobrem. E ali se senta, com custo (ai, como dobrar os joelhos dói).

Senta-se, poisa a cantarinha sobre os joelhos doídos e, pouco a pouco, deixa-se adormecer.

É escuro ainda, mas quase de dia…

Bate em silêncio, o coração escondido do bosque. Só o dedal brilha no dedo do Capuchinho Cinzento, mágico e brilhante como a lágrima de uma estrela. O Lobo, devagar, devagarinho, vai chegando à pedra cheia de musgo onde a Velha descansa, adormecida. Nem uma rainha de outros tempos descansaria assim num tronco de veludos!

E o Lobo, devagar, devagarinho, chega-se mais à pedra – o Lobo, com botas de espinheiros, os olhos de luzeiros, uma bocarra enorme mostrando alguns dentes agudos, ameaçadores.

— Ai, passaritos de cristal, eu própria que estou a escrever aqui na minha mesa, dentro de casa, tenho medo. Ajudem-me. Vocês não podem espantar o Lobo, pois não?

São tão frágeis as aves, com as suas asas de penas. Aéreas… Eu sei que vocês também têm medo. Mas cantem! Não vamos deixar a Velhinha, pois não? Vejam, ela sonha e sorri, o rosto cheio de rugas debaixo do capuchinho cinzento. E segura a cantarinha entre as mãos, o dedal brilhando como uma lágrima de estrela. Dormem ainda as flores no bosque, fechadas as suas pétalas no aconchego do chão. Ergue-se lentamente o manto da madrugada.

— E o Lobo, passaritos?

— O Lobo vem, vem de manso até à Velha adormecida. E pára, deslumbrado. Os seus olhos são luzeiros de ternura! Lambe docemente as mãos que seguram a cantarinha, lambe o dedal, estrela do Sol.

A Velha de Capuchinho Cinzento estremece. Quase acorda ao sentir aquela língua áspera que lhe passa pelas mãos que seguram a cantarinha. E sorri.

Acorda devagar, olha o Lobo com os seus olhos cansados. Afaga-o, como se o Lobo fosse um cão.

O sol acaba de nascer e, em raios antigos bailando, celebra este reencontro. E beija o dedal, seu irmão de luz.

— Passaritos de cristal, digam-me se sou eu que estou a sonhar, ou se é o Capuchinho Cinzento que sonha. Delicados passaritos de cristal, são vocês que cantam a resposta a esta pergunta?

Ou é a Lua que dançou no céu?

Ou são os meninos de calções e sainhas rotas que a Avó ia coser?

Ou é a música da água dentro da cantarinha?

Ou são as flores que o Sol veio despertar?

Ou é a magia do dedal?

Cantem! Cantem! Não deixem de cantar, voar, para esta história, de claros segredos, nunca acabar…

Fonte: http://contadoresdestorias.wordpress.com/2008/09/09/o-capuchinho-cinzento/


Confira:
Site da editora:
http://www.paulinas.pt/livro_detail.asp?idlvr=592

O Capuchinho Cinzento, de Matilde Rosa Araújo: uma "história de claros segredos":
http://www.casadaleitura.org/portalbeta/bo/documentos/ot_capuchinho_cinzento_srs_a.pdf
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